sábado, 27 de março de 2010

Da brisa, de um pássaro e do livro desencapado

Ao vagar em certo lugar, ao menos isso sei, que chamavam devaneios e ao encontrar ali poucos obstáculos, dei-me conta de estar numa imensa sala de paredes ricamente adornadas com inúmeras estantes de madeira de lei repletas de livros. Ao discorrer o meu olhar pela suntuosa sala, vi de relance no canto esquerdo e no fim da última prateleira certamente algo que destoava ao organizadíssimo e harmonioso acervo. De fato a sua utilidade fôra drasticamente minimizada, no momento só servia de escora para que os outros não saíssem de seu milimétrico espaço minuciosamente pensado pelo colecionador de capas. Com certeza seu tempo ali já estava mais do que ultrapassado, bastaria que a estupefata ambição do colecionador descobrisse outra bela capa a qual se encaixasse perfeitamente com as formas, tons e cores de seu acervo para que com brevidade fosse substituído. Caso não tenha ficado claro, a coleção da qual relato é de livros e pasmada fiquei ao notar que o interesse do surreal lugar era mesmo o citado, apenas as capas pouco importava o teor das páginas. Então, após essa mínima sondagem feita aos umbrais, fui ouvir o que o tal livro desencapado tinha a relatar, pois fiquei um tanto irrequieta ao saber que a principal regra do lugar era de nunca, jamais, nem por um segundo, deixar os livros abertos para que assim suas capas pudessem ser absolutamente conservadas a fim de que nada fosse modificado. Aproximei-me de leve, ainda mais leve do que costumo ser e como quem nada quer do tal livro fui cuidadosamente escutar os sussurros sufocados os quais depois também se revelaram a mim sufocantes dado o angustiante estado no qual se encontrava e do peso de suas confissões, estava mais do que no lugar errado. Ao conversar, disse-me que já não agüentava mais estar sempre preso ao mesmo lugar e escutar sempre as mesmas ladainhas que se esvaíam em superficialidades e em julgo de aparências, ansiava em um desespero aterrador que alguém se interessasse por palavras e por significados, a ele pouco importava-lhe a capa o que mais desejava era saber o que estava por detrás dela. Sabia que já havia passado pelo mesmo que esses tantos, já valorou por demais os títulos, sub-títulos, as artes das imagens que vestia até que pelo acidental rasgo de um espelho perdeu sua roupa e viu-se despido em palavras, palavras essas que diariamente tinham o poder de o conflitar ou pacificar, o preencher ou esvaziar, podiam também aprisionar, no entanto eram as combinações e confrontações de letras, palavras, idéias e interpretações que mais tarde o guarnecia de um âmago de liberdade, mas sentia falta de poder externá-la. O que mais ansiava era que no lugar reservado a intocável coleção uma ventania revirasse tudo no lugar, levasse consigo todas aquelas capas a fim de que não só ele experimentasse o novo das novas palavras e do reboliço que as novas junções de idéias poderiam trazer a todos os outros daquele lugar tão tolhidos por suas visões direcionadas, insuficientes e instantâneas, tão ligadas a irrelevantes superficialidades. Infelizmente, senhor pássaro, sinto lhe frustrar, não sei como ficou o livro, não pude saber do desfecho desse casual encontro, pois não marquei o caminho de retorno, fui levada às pressas para as revoltas ondas e não soube como voltar. Contudo ainda espero que algum dia ainda ouça de outros ventos o que aconteceu por lá.